domingo, 20 de setembro de 2009

Fugiu com o Mendola

Já eram três da manhã quando terminou o trabalho. Um artigo de 20 páginas. Para um colega de trabalho. Coitado, tão atarefado, como ela não o ajudaria? Sentiu uma dor no pescoço, um formigamento que se estendia para os ombros e para o braço. Tendinite. Precisa maneirar no computador. Colocou uma bolsa de água quente nas costas. Verificou o rádio. Ajustado para as cinco e quarenta. Dormiu ao som da TV.

O colega nem agradeceu. “Deixa aí que depois eu olho.” Era sempre assim. Acostumou-se. Deixou café na mesa de todos e sentou-se para ler seus e-mails. O chefe avisou que precisaria que ela ficasse até mais tarde. Nem esperou para ouvir o “sem problemas, o senhor é quem manda”. Era quinta-feira. Ela perderia seu seriado preferido, mas não tinha nada, não. Seria útil no escritório. Havia até comprado comida especial para o gato. Assistiriam juntos, aninhados no edredom novo. Sem problemas.
A irmã mais velha ligou:

- A mãe quer um forno novo. Anda tão deprimida que pensei se...

- Sem problemas. – Interrompeu. – Quanto vai custar?

- Olha, o modelo que ela quer custa 500. – A irmã fez uma pausa. - Dá para parcelar.

- Vou fazer o depósito na tua conta. Olha, no fim de semana...

- Tá bom, vê se não demora. – Cortou a irmã.

Ela sonhava com uma viagem. Para qualquer lugar, bem baratinho. Nunca tirara férias de verdade. Estava guardando dinheiro para isso. A mãe precisava. Não negaria. Fez a transferência pela internet. A tendinite. Tomou um relaxante muscular. Estava cansada. Queria sumir. Na sua terra, quando alguém sumia, diziam que fugira com o Mendola. Nunca diriam isso dela.

Espiou o colega lendo o artigo que ela escrevera. Ele deu um rodopio e um beijo na folha. Ela sorriu. Não teve tempo para degustar a pequena alegria. A irmã do meio, ao telefone, cobrava:

- Olha, tu tens que levar a mãe este final de semana para a casa da tia Margô. A mãe precisa sair. Tu és a única que não tem família para cuidar.

Ela sempre levava. A irmã continuava a gritar:

- Outra coisa: como tu podes depositar a quantia justa para o forno da mãe? Não sabe que banco cobra taxas? Que gasolina é cara para estar por aí?

- Podes deixar que eu mesma levo a mãe para comprar.- Disse, engasgada. -Pede para a mana...

A irmã desligou. Era assim mesmo, apressada. O remédio fez efeito. Deu uma moleza. Foi almoçar, como fazia todas as quintas, na casa da mãe. A empregada pediu-lhe adiantamento. A mãe tinha visita. Uma amiga dos tempos de Rotary. Não, não era sua filha mais velha. Era a mais nova, a raspa do tacho, o restinho. A mãe e a visitante comeram em silêncio. Ela fez de conta. Carne de porco. Era alérgica desde criancinha. Quando a amiga foi ao banheiro, a mãe explodiu:

- Tu não estás pensando em pedir de volta o dinheiro que depositaste na conta da tua irmã, né? Ela me ligou chorando. Assim tu me matas de vergonha.

Não, ela não pediria. Quem precisa viajar? Isso não bastaria. A volta da amiga apaziguou os ânimos da mãe. No caminho para o trabalho, num sinal fechado, espiou para dentro de uma pet shop. Eles tinham siameses. Na gaiola, coitadinhos.

O chefe atolou a todos de trabalho. Estava irritado. Como alguém pode prender aquelas coisas fofas em uma gaiola? Concentrou-se. A dor nas costas voltou. Só faltava mais um restinho. Um resto como ela. Que gente sem coração, pobrezinhos dos siameses. E se eles ficassem sobrando, restando? Será que os sacrificariam? Terminou tudo. Uma colega, atrasadíssima depois de um café demorado, pediu que a ajudasse.

- Não!

O escritório parou. Ouviu-se o bebedouro pingar. Todos olharam para ela. O silêncio fez o chefe sair de sua sala. Ela pegou seu casaco e sua bolsa. O chefe deteve-a:

- E a hora extra?

- Não!

A colega atrasada:

- Ainda temos o que fazer.

- Não!

Parou na pet shop. Só havia mais um gato. Ficou feliz pelos outros. Comprou o raspa do tacho, o restinho. A vendedora perguntou qual seria o nome.

- Mendola. - Fez uma pausa enquanto pagava - Diga a todos que eu fugi com o Mendola.

domingo, 13 de setembro de 2009

Cacos

Saiu da missa resolvida. Não passaria mais um domingo à tarde sozinha. Tivera filhos, marido. Tinha suas qualidades. Admitia: faltava-lhe entusiasmo. Iniciativa. Deixara as coisas chegarem naquele pé. Cada um para seu lado, cuidando das suas coisas. Dos seus interesses. Sem elos.

Entrou no supermercado com uma pressa antiga. O carrinho voava pelos corredores. Na fila do caixa, ligou para a filha mais velha. Fora de área. Para a filha do meio. Desligado. Para a mais nova. Nada. Ainda era cedo para os jovens.

O marido assistia à corrida de Fórmula 1 na sala. De pijamas. Ela levou-lhe o almoço comprado pronto. Na bandeja. Ele estranhou. Esboçou um sorriso. Meio-dia. Tentou mais uma vez falar com as filhas. Deixou recados nas caixas postais.

Bolo. Bateu claras em neve. A delicadeza da textura lembrou-lhe o seu vestido de noiva. As gemas. Com açúcar. Recordou-se das gemadas que fazia para a filha mais velha. Prematura, sempre foi fraquinha. Penerou a farinha. O pó fininho caindo na bacia. Areia branca. Férias em Garopaba. As crianças felizes. O marido, a amante, o flagra, o escândalo. Chocolate em pó. Carinhas lambuzadas, orelhinhas de coelho. Parentes incomodando nas datas festivas. A sogra, a cobra. Leite morno. Peitos fartos, mamadeiras. Noites sem dormir. Fermento. Calças curtas. A roupa da mais velha na mais nova. Orçamento apertado. Trabalho, trabalho, filhas largadas. A fôrma. De coração. Aperto no peito, expediente até mais tarde, filha doente. O forno quente. Abraços no dia das mães. E se o bolo solasse? E se elas não viessem?

O cheiro do bolo animou-a. Preparou brigadeiros. Festas de aniversário. Crianças barulhentas. Balões estourados. Ligou novamente. A mais nova atendeu. Sim, mais tarde ela iria, sem problema. Bolinhas de polvilho. Lanches das tardes chuvosas. Lições de casa bem feitas. Ela arrumou a mesa. Estreias: a porcelana herdada, a toalha que ela mesma bordara, flores colhidas no impecável jardim. A jarra com suco. O adoçante para a mais velha. O pão integral para a filha do meio. Iogurte para os bebês. Queijo branco para a mais nova. Uma xícara de café solúvel, três de açúcar, uma de Nescau, um quarto de água fria batidos no processador. Só esperaria as filhas chegarem. Duas colheres em cada xícara. Um beijo em cada uma antes de irem para escola. Leite quente vertido por cima. Cobrir as filhas no meio da noite. Será que elas ainda gostavam disso?

Tudo pronto. Ouviu os roncos vindos da sala. Na TV, bailarinas mal vestidas dançavam ao som de uma música popular. Hora de desligar, hora de acordar. As crianças estavam chegando. E se não chegassem?

A campainha tocou. As filhas chegaram com as netas. Ao mesmo tempo. Não juntas. Estranharam-se. As rugas. As cores dos cabelos. As meninas crescidas. Onde estavam aqueles bebês? O abraço desajeitado. Cheiro do passado. O beijo no ar. Os olhares desencontrados. Velhos chavões. As crianças brincavam. A mãe convidou-as para o café.

Ela tremia. Silêncio das coisas não ditas. E se elas não gostassem? Derramou um pouco de leite. A mais velha foi ajudar. As mãos se encontraram. Os olhos. Reconheceram-se. Abraçaram-se A leiteira de porcelana escorregou da mão. As outras duas correram em socorro. Juntaram-se ao calor do abraço. O barulho trouxe o pai à sala de jantar. Era hora de juntarem todos os cacos.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Vestido de noiva

Vestido de noiva

Ela tomou um banho rápido. De banheira para não molhar a cabeça com os rolos. Valeria o incômodo. Valeria? Por que não sentia que aquele era seu grande dia, como descrevem as revistas femininas? Por que não estava com os nervos em frangalhos? Por que restavam tantos porquês? A campainha denunciava a chegada do cabeleireiro. Começaria o ritual.
O cabeleireiro e seu séquito esperavam-na no quarto. Abraçaram-na. Fizeram-lhe festa, frases feitas. Ela sentiu-se nauseada. Não, não estava grávida. A maquiadora trouxe um copo d’água. A manicure contemplava o vestido de noiva estendido sobre a cama. Digno de uma rainha. Cristais svarowski em profusão. Detalhes aqui e ali eram enaltecidos. Ela queria dizer que aquele não era o vestido com que sonhara. Aliás, nunca sonhara com vestido de noiva algum. O branco não lhe caía bem.Nada lhe caía bem. A festa em seu quarto estava ruidosa demais. Preferiu calar-se.
A mãe entrou no quarto. Duvidou que os cachos dos cabelos durariam até a igreja. Com um tempo daqueles! Só faltava chover mais ainda na hora de descer do carro. E esse vestido de cauda? Vai sujar. Ela bem que avisara a filha para pegar outro modelo. Mãe nunca é ouvida, sabe como são essas jovens de hoje. Só faltava o vestido não fechar. Se essa desgraça acontecesse, não seria por falta de aviso: sempre fora uma mãe zelosa.
A maquiagem ficou pronta. A mãe achou muito fraca. A filha, muito forte. O cabeleireiro e a manicure intervieram: estava linda. A noiva decidiu que ficaria assim mesmo. Não faria diferença. Lembrou de suas leituras atrasadas para as aulas do mestrado. Uma tontura. As palavras eram um zumzum sem sentido.
Chegou uma prima, arrastando suas duas filhas, as damas de honra. Trouxeram também o buquê de lírios. O cheiro nauseante das flores. O excesso de fixador de cabelos. O gosto enjoado do batom. A algazarra das meninas. A conversa inútil do séquito. Ela teve vontade de correr. Uma trovoada mais forte assustou-a. O coração disparou. Viu pontinhos pretos. Era hora de vestir-se.
As mangas entraram apertadas. A mãe sorriu. O vestido fechou. Ela viu uma sombra de decepção no olhar da mãe. O cabeleireiro declarou a noiva pronta. A mãe fez menção de dar uma voltinha em torno da filha:
- Hoje não! – disse a filha segurando a mãe pelo braço. – Hoje tu não vais me diminuir.
Fez silêncio. As unhas da filha marcaram o braço da mãe. A prima interveio: coisas de noiva, é natural o nervosismo. Mãe e filha se olharam, desafiadoras. Elas sabiam. Não era nervosismo. A mãe desviou o olhar e disse:
- Cuida, filha, para não tropeçar. Vê se não gagueja. Tu sabes que eu me preocupo tanto, minha única filha.
O pai entrou no quarto. Tomou o braço da filha. Era bom irem logo, o padre não queria mais do que dez minutos de atraso. Conduziu-a à limusine alugada. Ela viu a euforia das daminhas. Estavam felizes em seus vestidos rodados. Lembrou-se de quando fora daminha, no casamento de uma tia. Vestido branco com uma faixa rosa à cintura. Tiara de brilhantes parecida com a da noiva. Levava uma almofada de cetim com as alianças. Sentiu-se importante. Foi à frente do cortejo, toda feliz. O corredor da igreja era sua passarela. Quando ia abanar para a mãe, ouviu-a dizer à senhora que estava ao seu lado: “A gordinha, a mais feinha das três daminhas, é minha filha. De criação, não temos gordos na família.” Soube, naquele momento, o que sempre intuíra.
A alegria das meninas a trouxe de volta. Queria a mesma sensação delas. Sentiu-se mal com a inveja. Como conseguiam? Lembrou da monografia pela metade e de uma referência teórica. Fez uma associação mental para não esquecer. A mãe interrompeu sua concentração:
- Tens certeza do que estás fazendo? Ainda está em tempo de desistir...
- Cala a boca, mulher. – Ordenou o pai. – Vais deixar a guria nervosa até hoje, urubu? Te emenda!
Ela não ouviu mais a discussão. Olhava, embevecida, para as daminhas. Queria aquela alegria. Desejava o riso solto. Invejava os sorrisos e os gritinhos de frenesi. Chegaram à igreja. Não chovia. O vestido não sujou. Tremeu. Braço dado ao pai, pensou em desistir. Ave Maria. Olhou para as meninas. Cheias de graça. Espalhavam pétalas de rosas no chão. Benditas eram. Queria-as para si. Queria ser uma delas. Não sairia correndo. Não poderia. Não as decepcionaria. Não macularia aquela felicidade.
Ela não tropeçou, não gaguejou. Tampouco desmaiou. Desafiou o olhar desaprovador da mãe. Contemplava as crianças plenas de graça. O noivo. Ela queria duas meninas. Ele lhe as daria.

domingo, 6 de setembro de 2009

Feliz aniversário

Dois soldados conduziram-na até um cubículo. Pediram que aguardasse. Como não o faria? Trancaram-na. Nenhuma janela. Uma lâmpada fraca pendia por um fio. As paredes sem pintura vertiam água. Frio úmido no calor de dezembro.
Havia três cadeiras e uma mesa minúscula. Em um canto, fios, meia dúzia de pregos, uma bacia e uma marreta. No outro, um camundongo morto. Baratas aqui e ali. A umidade do chão chegou aos seus pés, desprotegidos nas sandálias de couro. Estava com o estômago embrulhado: o cheiro de mofo, do camundongo putrefato. O balanço da Veraneio que a trouxera até ali. O medo. Tinha consciência da sua grande boca. Justo naquele dia. Sexta-feira, 13 ̶ seu aniversário. Estava conformada no seu plantão quando apareceram os soldados.
Sentou. Suava frio. Levou a mão aos olhos. A maquiagem borrou. Custou caro aquele delineador da Max Factor. Meia hora na frente do espelho, copiando a maquiagem da garota da capa da revista O Cruzeiro para quê? Para ser levada em um camburão cheio de milicos? Para ser uma encarceirada mais bonita? Não haveria de ser nada grave. Nunca se envolvera em movimento algum. Mantivera distância de passeatas, greves, reivindicações. Achava tudo isso uma bobagem improdutiva. Antipatizava com os ditos “subversivos”. Não queria saber dos problemas alheios. Os outros também nada sabiam sobre sua vida. Não era de seu feitio bancar a simpática. Muito menos a heroína. Se quisessem nomes, falaria qualquer um. Talvez daquele vizinho chato, se soubesse. Ou do colega insuportável.
Sua espera não tinha fim. Chaveada. Silêncio. Sem noção de tempo. Sentia falta de ar. A lâmpada piscou duas vezes. Bateu na porta, gritou. Ninguém. A lâmpada apagou. As baratas! Como se defenderia delas no escuro? Esmurrou, chutou a porta. Tateando, subiu na mesa. Não conseguiu ficar de pé. Tremia. A porta abriu-se.
̶ Ainda tens medo de escuro, senhorita? ̶ Perguntou o oficial, adentrando o cubículo.
Ela desceu da mesa. Ajeitou as roupas e o cabelo. O oficial pegou-a pelo braço, fazendo sentar. Outro oficial chegou. Era mais velho e cheio de condecorações. Trazia um envelope grande e uma pasta. Colocou papéis sobre a mesa e uma caneta. Ordenou, ríspido:
̶ Assine!
Eram prontuários preenchidos. Certidões de óbito. No carimbo, seu nome verdadeiro, antecedido de “Dra”. Corou. Suas mãos tremiam. Engasgada, disse:
̶ Há um engano aqui. Sou enfermeira. Não posso assinar.
O oficial mais velho entregou-lhe o envelope, dizendo, jocoso:
̶ Agora é. Basta colaborar para a ordem e para o progresso da nação. Ou preferes ver os cadáveres para verificar se o laudo está correto, doutora? Ou que todos saibam de onde vens?
Os oficiais riram. Ela abriu o envelope. Um diploma de Medicina com seu nome de batismo.
̶ A nação tem muitos colaboradores. ̶ Comentou o condecorado.
̶ Assine! ̶ Ordenou o mais jovem.
Obedeceu sem erguer os olhos. Sua letra saiu tremida. Os oficiais conferiram as assinaturas. Com ar de deboche, o condecorado disse:
̶ Até amanhã!
O mais novo, rindo, falou:
̶ A propósito, feliz aniversário, dou-to-ra.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Na casa do espanto

Este texto saiu no primeiro fascículo de 2009 do Ler é Saber, cujo tema era "Histórias extraordinárias". Pediram-me um texto para os alunos menores, de primeira a terceira série, que fosse rimado. Deu no seguinte:

Na casa do espanto

Na casa do espanto,
Um fantasma em cada canto.
Na cortina esfarrapada,
Uma aranha pendurada!

Enfeitando o quarto de dormir,
Há um esqueleto a sorrir.
Na cama toda empoeirada,
Uma múmia está deitada.


No banheiro, há uma pia rachada
Toda cheia de sapos – que coaxada!
Dentro da banheira centenária,
Banha-se uma serpente sanguinária.


Reúnem-se na sala de jantar
Vampiros terríveis a confabular:
De quem será o próximo pescoço mordido?
O meu não! Levo alho bem fedido!


Na cozinha, uma bruxa malvada
Prepara uma maçã bem envenenada.
É só o que ela sabe fazer:
Feias e belas a adormecer.


Frankstein lê na sala de visitas.
Esse escuro todo faz mal para as vistas!
Eta monstro descuidado para valer!
Mas eu não vou com ele me meter!


A Cuca invadiu o porão.
Trouxe consigo o Bicho-Papão!
Esses dois não são de nada:
Só sabem fazer trapalhada!


O Velho do Saco está no telhado
Com a chuva, ficou todo molhado!
Tomara que pegue um baita resfriado,
Para deixar de ser tão malvado!


Dessa casa, gosto mesmo é da saída!
Nunca mais por mim será invadida.
Esses monstros não são grande perigo,
Mas não sou louco de testar isso comigo!

quero

quero
toda a graça
toda a pirraça
de quem traça
o riso
sem siso
sorriso
só riso
na face
em que nasce
o novo dia.
Um fato
- factível -
é um sonho
-intangível -

brincadeira

SOL
SOLITÁRIO
SOLIDÃO
CELESTIAL
TU
TELÚRICO
TERRÍVEL
TEMOR
AMOR.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Ao vencedor, as batatas!

Foi cedo à banca de jornais. Cantarolava. Cuidava para não pisar nos rejuntes das pedras. Sorte. Queria ler a crítica de seu mais novo romance. Mais um sucesso, pra variar. Desfolhou todo o jornal, estabanado. Sacos de batatas. Intitulava-se “Sacos de batatas” a resenha. Era acusado de jogar seus personagens de um lado a outro sem nenhum zelo ou piedade. Não leu o resto. Imaginava o deleite de seus parentes. De seus ex-colegas. De sua ex-mulher. Da sua mãe.
Entrou em casa batendo a porta. Chutou o gato. Berrou para a empregada:
̶ -Mande seu filho vir aqui buscar essa porcaria de computador. É presente. Que faça bom uso.
̶ -Muito obrigada! – Disse, feliz da vida. ̶ Mas não quero dado, não! O senhor vai comprar um daqueles fininhos, bem modernos? Acho lindo, ainda mais os pretinhos...
Ele cortou a tagarelice:
̶ - Não preciso mais disso. Nunca mais escrevo.
A empregada arregalou os olhos. Abriu a boca e engoliu o ar. Suspendeu a pergunta, temerosa.
̶ - E você, trate de dar um jeito de aprender a escrever direito porque nem lista do super eu faço mais. ̶ - Ordenou.
̶ - Falando nisso – murmurou a empregada olhando para o chão -̶ , não vou fazer aquele seu purê porque as batatas acabaram. O senhor poderia...
Ele não ouviu o final da frase. Trancou-se no quarto. Deitado, olhava para o teto. Contava as tábuas do forro. Não queria pensar. Viu as malas sobre o roupeiro. Fugir seria trabalhoso e inútil. Deitou-se de bruços. O barulho do filho da empregada levando o computador irritou-o. Tapou a cabeça com o travesseiro. Dormiu. Sonhou que estava amarrado numa sala escura. Trouxeram-lhe um fumegante suflê de batatas. Quando iam lhe obrigar a comer a primeira colherada:
̶ - Senhor, senhor. Tem um moço aí com um papel pro senhor assinar. ̶ Chamou a empregada.
Ele lembrou-se. Era dia e não escrevia mais. Do quarto, gritou:
-̶ Assine você.
A empregada insistiu. Ele retrucou. Silêncio. Ele ouviu um choro baixo. Ela balbuciou:
̶ - Mas eu não assino mais meu nome desde que me divorciei. Não consigo.
Ele abriu a porta:
̶ - A sacana da minha ex-mulher também me deixou e nem por isso...
Ele não tinha moral para terminar a frase. Ela não notou:
̶ - Mas o senhor não teve que voltar a usar o sobrenome do pai. Pai bêbado. ̶ Soluçava. ̶ Coisa de mulher largada, feia, preguiçosa. ­Não sou isso, juro.
Ouviram o portão bater. O carteiro fora embora. Ele olhava a pobre criatura naquele choro inédito. Ela tentava se explicar:
- A lista de super eu faço. Não tem problema. Só assinar meu nome não dá...
Ele teve vontade de abraçá-la. Pegaria mal. Quis perguntar o que houve com o pai. Isso abriria precedentes. Nunca percebera aquela mulher. A fragilidade escondida sob a aparente rudeza. Um saco de batatas. Como seria aquele marido que a abandonara? Que expectativas frustrara com o casamento? As perguntas rodavam em sua cabeça. Precisava de um computador novo. Pegou um casaco e avisou:
̶ - Vou sair e demorar. Ligue o alarme quando for embora.
Ela já não chorava. Lembrou, delicada:
- Não esquece das batatas, tá?