quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Domingueira

     Se essa vida é só um demoramento, pra que jogo de pife? Pra retardar no sem-pressa de viver? Era o que era. Ademais, não havia o que fazer. Domingo de tarde, cumpridas as santas obrigações, sobrava isso: ver os amos no jogo, velhinhos que eram, prestar assistência. Assistência de parte de gente boa em função de parte má. Explico.


       No aturdido do dia-que-vem-que-vai, a boa dona patroa andava de olhos no chão. Nem mais ralhava “Domingas, traz isso”, “Domingas faz aquilo”. O coração de Domingas dava falta dos supetões. Do chamado. Da utilidade. Não era ela quem sempre acudia? Fazia o bolo preferido, dona patroa mal e mal mastigava uns farelinhos. Lavava a casa com água cheirosa, anil pra cortar quebranto, dona nem piava. Domingas, alma enosada, pensou até em quebrar um estimado prato pra ver se a dona ralhava. Do que não se encorajou. 

       Domingo veio, no devagar-depressa dos tempos. As muitas visitas se chegaram à casa. Gente regular, sem susto nem novidades. Se fizeram os doces, se serviram os pratos, se sesteara. À hora do café da tarde, Domingas acordou a todos com rescendentes bolinhos. Canela e baunilha. Café.

      Na mesa de carteado, a dona ganhava cor. Os olhos ressurgiam da neblina. Tonitroava o nome: “Domingas, traga mais café, minha filha”. “Domingas, faz o favor de buscar um refresco pra esse daqui.” “Domingas, minha joia, faz mais uns bolinhos, mas regala mais no açúcar. Filha. Favor. Joia. Não tinha conta a felicidade de Domingas.

     No que domingo findou. Restou o cricrilar do fim de tarde, com o frio chiado do radinho de pilhas anunciando o novo campeão brasileiro de futebol. Foguetes espoucavam aqui e ali. O patrão esmurrava paredes. Dona nem botou sentido. Adormeceu num sorriso.

       A semana passou com a cara fechada de segunda-feira de céu cinza. Cadê bochechas vermelhas? Cadê olhos verdes brilhantes?  Na terça, Domingas experimentou: não varreu a casa. Dona nada disse não. Na quarta, solou o bolo. Dona nem tomou assunto. Domingas não achou ousadia mais. Esperança teve no domingo.

  Certo e regular, o dia santo chegou, com suas visitas e comilanças. Veio o jogo, só não vinha a sorte pra Dona. Domingas botou lembrança: um baralho igualzinho na gaveta da cristaleira. De parte de má, de parte de boa, Domingas enfiou as cartas no bolso do avental. Era o errado pelo certo. Se fazia o mal pelo bem, desenganava o diabo. Tudo no seu tempo, tampa e panela. Andava a servir a mesa de carteado. Sabia do jogo, abestada não era. No que ao servir um café pr’aquele, mais um bolinho pr’este, botou na mão da Dona a carta de precisão.

   A Dona ganhou uma, ganhou duas, ganharam três partidas. Perderam a quarta, modo de não dar na vista. Jogo acabou – o sol se deitava. Domingo acabou, nem ouviram o cricrilar: eram as risadas da Dona, entre uma cantoria, que se ouvia no banho.

     A semana teve ocupação nova. As horas se iam passando ligeiras, esperando o fim do sol. À hora da Ave-Maria, a Dona ensinava nova arte a Domingas. Canastra, escova, o difícil pôquer.

     Assim se foram os domingos. Meses. A fama de sorte da Dona corria. Não, não jogava a dinheiro, pecado que era. Só coisa de distrair os velhos. A despeito, vinham gentes famosas à casa. Dia chegou que jogadores da mais alta estirpe marcaram o jogo.

   A Dona estava nervosa. Domingas disfarçava. Ganharam uma, duas. Dona ria mais alto do que nunca. As faces, a testa, tudo corava. Domingas fez o combinado sinal de perderem. Dona não aceitou. Ganharam três, quatro. Cinco. Dona ria, alto, muito alto. Tremia. Seis. Na sétima vez, quando Domingas trocava uma carta enquanto servia bolinhos de queijo, um dos jogadores disse muito alto:

- Peraí!

    O silêncio se fez pesado. Dona não levantou os olhos. Tremeu. Convulsionou, feias tremuras da parte de morte. As cartas voaram longe. Domingas zonzeou. “Não, eu só queria mais um desses bolinhos.” A Dona tinha as mãos cerradas. O Dono e outros homens fortes a levaram para o quarto. Os olhos cerrados, as mãos fechadas, os dentes rangendo. Domingas correu, trouxe o de cheirar, de espantar desmaio. A dona cheirou, disse algo qualquer, abriu um dos olhos. Se viu só com Domingas, que o marido fora providenciar doutor.

- Estamos sós?

    No que Domingas assentiu com a cabeça, a Dona abriu a mão roxa de fehada. Uma carta amassada.  Dama de ouro. Piscou um olho. Não no próximo domingo, que dava na vista, mas no outro, tinha mais.