quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Caixa 13

CAIXA 13




O supermercado estava lotado. Ana detestava aquele costume de empilharem produtos em promoção no meio do corredor. O sistema de ar condicionado não estava dando conta do fevereiro no paralelo 30. Mas era preciso. Leite de soja, grão de bico, quinua, amaranto. Pegou linhaça dourada, já que não encontrou a chia. Não queria se estressar: sabia que naquele supermercado funcionava sempre assim. Mas era o mais próximo de casa.

Precisava pegar o leite de soja. Sempre fazia a volta com o carrinho para não enfrentar aquele corredor da tortura. O movimento, no entanto, não permitia tal manobra, a não ser que pedisse muitos com-licenças e dissesse outra dezena de muito-obrigadas. Teria até que sorrir, quem sabe. Preferiu enfrentar, era forte. Manteria o foco à sua direita.

O cheiro doce do corredor agrediu a sua disposição. Sabia que à sua esquerda estava toda a sorte de coisas que emporcalham as artérias, o fígado, o coração. Trinta segundos na boca e toda a eternidade nas coxas e na barriga. O cheiro de baunilha misturava-se ao do chocolate. Mas o aroma artificial de morango despertou-a. Não cairia naquele engodo novamente. As imagens retidas na memória daquele dia em que acordou entubada e perdida no hospital eram a cera que vedava todos os seus sentidos para o canto doce do ser mitológico meio sereia, meio medusa que habitava a gôndola da esquerda. Não podia olhar. Quando, afinal, avistou o leite de soja, sua boca estava inundada de um perigoso mar de saliva, que precisava ser engolido junto com os seus muitos diversos desejos.

Vencido o percurso das tentações e dos riscos iminentes a sua saúde, o que lhe sobrava era o gosto amargo do que foi sem nunca ter sido. Era preciso, era preciso. Era preciso distrair-se com as cores dos hortifrutigranjeiros, mas o amarelo dos pimentões era um sorriso sem graça. Cumpriu, sem esbarrar em ninguém, a sua sina de colocar no carrinho a esquisitice do kiwi, a casmurrice da moranga cabutiá, a antipatia da vagem e a hipocrisia do brócolis, amargura que tenta se travestir em flor. Era preciso engolir isso tudo. E ainda ficar feliz como um morango fora de época.

Dirigiu-se para a fila do caixa. Quilométrica, como previsto. Olhava para os carrinhos alheios, repletos de tranqueiras. Os pais não tinham vergonha de comprar tantas besteiras para os filhos? Ela morreria se alguma conhecida a pilhasse comprando guloseimas para os netos. Quando o marido podia, ele era quem o fazia. Nem valia a pena fazer isso: muito provável que as porcarias passassem do prazo de validade. Daí, seria duplo desperdício.

Chegou sua vez no caixa. O anúncio luminoso mandou-a ao caixa de número 13. Ela fez um pouco de esforço para não desgostar. Já olhou mais adiante: faltavam empacotadores. No mesmo caixa 13, Uma mulher bem jovem, de cabelos curtos e multicoloridos, vestindo uniforme de banco e um senhor de óculos grandes e vidros daqueles que deformam a aparência dos olhos ainda juntavam suas compras o mais rápido que podiam. No caixa ao lado e na outra e na outra a situação não era diferente. Todo mundo falava ao mesmo tempo. O barulho das reclamações, misturado ao de sinais sonoros dos caixas, foi a irritando. Sentiu uma tontura. A pressão se alterava, ela sabia. Respirou fundo, mas o cheiro que veio de brinde era nauseante: sabão em pó, pão quente, alvejante e peixe. A tontura era tanta que errou duas vezes a senha do cartão de crédito. Queria ser Moisés para abrir aquele mar de carrinhos à sua frente – só assim não esbarraria com muitos ninguéns. Nem teve tempo de traçar um plano de defesa – ou seria de contra-ataque? Outra moça de cabelos curtos e multicoloridos trombou com ela, que bateu no senhor de óculos esquisitos, que quase atropelou um jovem executivo. Na confusão, os carrinhos das duas mulheres foram parar longe. Ana foi, rápida, atrás do que lhe pertencia: só assim não precisa olhar para trás tampouco dizer qualquer coisa como “sinto muito”.

Coração saltando pela boca, Ana não entendia de onde veio aquela agilidade repentina. Jogou as compras no porta-malas do carro. Queria se tirar dali o mais rápido possível. Fugir da vergonha de ter fugido sem dizer palavra. Era grosseira, reconhecia, mas não conseguia fazer diferente. Queria flanar, educada, por todas as situações, mas trombava violenta.

Passou por dois sinais amarelos, quase raspou o carro no portão de casa. Abriu o porta-malas e chamou a empregada para que guardasse as compras, que ela não estava bem. Jogou-se no sofá e ligou a televisão. Qualquer coisa que a livrasse daqueles pensamentos. Os pontos pretos que enxergava eram uma ciranda de rodas descompassadas de carrinhos de supermercado. Queria apagar o incidente e a vergonha de sua postura, mulher mais que adulta que era. Foi quando a empregada a chamou. O que significava aquilo, Dona Ana?

Sobre a imensa bancada de granito, jaziam, desembrulhados, produtos estranhos àquela cozinha. A empregada perguntava se a Dona Ana estava bem, ela chamaria o filho mais velho. As imagens assomavam-se aos seus olhos, mas não encontravam eco de significado. A empregada insistia na pergunta, trazendo-lhe ao chão da realidade. Leite integral, farinha láctea, vidros e vidros de papinhas prontas, um bico cor-de-rosa, fraldas tamanho G, manteiga, queijo amarelo, caixa de bolo Sol, chocolates, balas. Não, aquelas não eram suas compras. Algum sátiro aliou-se àquele ser do mal habitante do corredor das coisas intocáveis. Foi ele quem colocara aquilo tudo ali. Uma enorme lata de biscoitos amanteigados despertou-lhe lembranças dos filhos pequenos, alegres migalhas enchendo de vida a casa agora inerte. A empregada falava ao telefone, pedindo auxílio ao filho de Ana. Ana abraçou a enorme lata colorida. Outras tantas cores passeavam na sua memória. Escorou-se na parede, deixou-se escorregar, para o desespero da empregada, que gritava coisas que Ana não ouvia. Ana não rompeu o lacre da lata: ela abriu a anticaixa de Pandora. Estava tudo em ordem no céu de sua boca: o gosto de domingos ensolarados debaixo de árvores mosqueadas de sol. De roupas de todos os tamanhos secando ao sol. De cobertores estendidos no chão da sala aos sábados cinzentos. A força da empregada tentando lhe erguer do chão, entretanto, roubou-lhe do doce enlevo. A vida prática a chamava. Sim, o filho já ligou para o supermercado. A dona das compras foi identificada. Chegaria dentro de poucos minutos para desfazer a troca. A empregada se encarregava de empacotar tudo de novo.

A moça de cabelos curtos e coloridos tocou a campainha. Os filhos pequenos, um menino e uma menina, espiavam do carro. A empregada atendeu, mas a moça fez questão de falar com Ana. Os biscoitos. Ana não sabia como dizer, preferiu fazer de conta que nada ocorreu. Mas a moça insistia e esperava na sala, a empregada avisou. Não havia jeito: Ana enfrentaria o julgamento. Mas a moça adiantou-se. Meio sem jeito, confessou:

– Está tudo aí, menos duas bananas – disse, reticente. – Sabe como são essas crianças, quando encasquetam que querem uma coisa, já viu, né?

Ana engasgou-se. Por baixo daquela maluquice de cabelo, havia algo. Algo que queria para si, a vida inteira. A empregada a olhava, inquisitora. O quadro com a foto do marido e das crianças a olhava. A apresentadora do programa que passava na televisão da sala a olhava. O elefante da mesinha de centro a olhava. Pediu um instante. Foi à cozinha e apresentou a lata. Pensou em culpar a empregada, mas a encontrou aos sorrisos com a moça na sala.

– Pois é, aqui também faltam alguns biscoitos – confessou, engasgada.

A moça esboçou um sorriso. Toda a graça de um sorriso de um ninguém estranho. Toda a saudade de um sorriso singelo. Num fio de voz, Ana, munida de toda a coragem, completou:

– Sabe como são essas senhoras diabéticas. Não podem ver um doce que se descontrolam...